Mariana Sanches Com Inácio Aguiar, de Maracanaú, Ceará
LUCRO
O comerciante Francisco Aguiar, em seu mercado, em Maracanaú, Ceará. Ele dá desconto para quem usa maracanãs.O Brasil tem uma bandeira, um presidente, um brasão, um hino e... 41 moedas em circulação. Além do real, os moradores de São João do Arraial, Piauí, podem fazer compras e receber parte do salário em notas de cocal. Em Alcântara, Maranhão, é possível usar o guará. Em Cariacica, Espírito Santo, o comércio aceita o girassol. Em Dourados, Mato Grosso do Sul, dá para fazer pequenos negócios com o pirapirê. Cocal, guará, girassol e pirapirê são algumas das moedas emitidas pelos 40 bancos comunitários do país. Cada uma delas circula em um município pequeno, de até 50 mil habitantes, ou em um bairro afastado e pobre. Essas notas só são válidas na região de atuação de cada banco comunitário. A cotação oficial é idêntica à da moeda nacional: 1 guará vale R$ 1.
A Rede de Bancos Comunitários, uma espécie de Febraban dessas mini-instituições, calcula que estejam circulando o equivalente a R$ 80 mil em moedas alternativas, em oito Estados brasileiros, uma quantidade ainda pequena. Mas, de acordo com o governo federal, a circulação dessas moedas deverá quadruplicar até 2010. Pelos planos oficiais, elas estarão presentes em todos os Estados.
Na teoria, as moedas paralelas servem para fortalecer a economia da área onde circulam. Como elas só podem ser usadas no próprio bairro, ajudam a movimentar o comércio e a gerar empregos nos locais onde são usadas. Há outra vantagem: os comerciantes dão descontos de 2% a 10% no preço das mercadorias para quem usa o dinheiro alternativo. Para o comerciante, é um meio de evitar que o cliente troque a moeda diferenciada por real e gaste em outras regiões.
Outro benefício é que, em moedas alternativas, os bancos comunitários fazem empréstimos de até R$ 800 sem juros. Para obtê-lo, basta ser morador do local, apresentar um plano para aplicação dos recursos e ter o aval da vizinhança: moradores são chamados a dizer se o tomador costuma ter conduta honesta. Não há consulta ao Serviço de Proteção do Crédito (SPC). Mesmo assim, segundo as instituições, a taxa de inadimplência em bancos comunitários, que também fazem empréstimos em real, não passa de 2%. No mercado financeiro convencional, ela é quatro vezes maior, de 8,1%.
A ideia de criar moedas alternativas surgiu há nove anos entre os moradores da Favela Conjunto Palmeiras, em Fortaleza. Foi quando eles perceberam que o microcrédito oferecido pelo banco comunitário local, criado dois anos antes, não era suficiente para fortalecer a economia da favela. Na época, seus 20 mil habitantes consumiam R$ 2,4 milhões por mês, em valores atualizados, segundo uma pesquisa feita pela associação de moradores. Mas quase tudo era gasto em lojas do centro da cidade. “A gente reproduzia o sistema colonial: a periferia mandava para o centro as riquezas em troca de alimentos e de produtos não duráveis”, diz Joaquim de Melo Neto, fundador e gerente do Banco Palmas. A moeda própria, palmas, foi criada para resolver esse problema.
De acordo com o administrador Jeová Torres, professor da Universidade Federal do Ceará, a moeda e o Banco Palmas turbinaram o PIB da favela. “Quando as pessoas recebem o palmas, gastam no próprio bairro. O dinheiro fica ali por mais tempo do que se as pessoas recebessem em real”, diz. Em 2008, Torres fez uma pesquisa sobre o impacto do banco na comunidade. Segundo o estudo, 25% das pessoas afirmam que sua renda aumentou, e 20% dizem ter conseguido trabalho depois da criação do banco. Um exemplo é o cabeleireiro Nazareno Constantino, que modernizou seu salão depois de obter empréstimo do Banco Palmas. “Eu não tinha negócio formal antes porque não conseguia empréstimo em lugar nenhum”, diz.
O governo Lula tenta há seis anos reproduzir a experiência em outras áreas. “Ajudamos mais de 30 bancos e vamos criar outros 150 com moedas próprias até 2010”, diz o economista Paul Singer, da Secretaria Nacional de Economia Solidária, subordinada ao Ministério do Trabalho. Uma das iniciativas estimuladas pelo governo é do Banco Paju, em Maracanaú, Ceará. Lá, as notas de maracanãs começam a ganhar força. Estima-se que 3.300 pessoas já usem a moeda. “Dou 10% de desconto para quem usa maracanã. Recebo 300 maracanãs por mês”, diz Francisco Aguiar, dono de um mercado na região.
Outro entusiasta da ideia é o Banco do Brasil. “Desde 2005, emprestamos R$ 3,4 milhões aos bancos comunitários”, diz Robson Rocha, diretor de Menor Renda do BB. “É um investimento seguro. O banco comunitário sabe melhor que qualquer agência para quem deve emprestar. Os funcionários moram no lugar e conhecem a comunidade.” Apesar da crise, a procura por empréstimos comunitários cresceu 8% desde setembro, segundo os próprios bancos. Eles têm hoje em caixa R$ 1,5 milhão para empréstimos.
A experiência brasileira não é única. Há moedas sociais mesmo entre países desenvolvidos, como Canadá e Estados Unidos. E os brasileiros já fazem escola. Em 2006, a Venezuela enviou seu ministro de Economia Solidária para conhecer o Banco Palmas. “Baseados em nossa ideia, os venezuelanos criaram 3.600 bancos comunitários e 300 moedas”, diz Singer. No ano passado, o economista Muhammad Yunus, prêmio Nobel da Paz pela mais bem-sucedida experiência do mundo de microcrédito (o Banco Grameen, de Bangladesh), mostrou entusiasmo com a iniciativa depois de uma reunião em Brasília com Melo Neto, do Banco Palmas.
Apesar do entusiasmo do Ministério do Trabalho, do Banco do Brasil e de Yunus, os bancos comunitários não são consenso no governo. “Estamos estudando quais serão os efeitos desses bancos para a economia nacional e como regulamentá-los”, diz Marusa Vasconcelos, subprocuradora-geral do Banco Central. A Caixa Econômica Federal e o Ministério da Fazenda também são reticentes em relação à experiência. Apesar de acompanhadas pelo Ministério do Trabalho, as emissões das moedas não são controladas por nenhum órgão oficial.
Um dos temores é que um crescimento acentuado de moedas alternativas possa desorganizar o sistema financeiro e provocar inflação. Foi o que aconteceu na Argentina, no começo da década, quando a crise econômica levou à desvalorização da moeda nacional, o peso. Diante da escassez do peso, as moedas paralelas ganharam força. Mais de 2 milhões de argentinos chegaram a usá-las, número muito superior aos 120 mil brasileiros que já adotaram as cédulas locais. As falsificações começaram a acontecer. Com mais notas no mercado, a inflação explodiu. “Malandros existem em todo lugar”, diz Paul Singer. “Por isso, é importante haver um regulador desses bancos. Se não for o Banco Central, algum outro órgão.” No Congresso, há um projeto para instituir mecanismos de controle para bancos comunitários. O deputado Eudes Xavier (PT-CE), relator do projeto, acredita que a discussão levará mais um ano para chegar ao plenário.
Nem todas as experiências de moedas alternativas são bem-sucedidas. Em Alcântara, no Maranhão, o Banco Quilombola e suas notas de guará foram criados em 2007, mas hoje as cédulas são quase raridade. Estima-se que metade foi comprada como souvenir por turistas. Alguns chegavam a pagar R$ 5 por uma nota de 50 centavos. A circulação do dinheiro alternativo foi quase extinta. Em abril, o banco sofrerá intervenção. Tudo para que não vire um Lehman Brothers quilombola.
Fonte: Revista Época

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